Social e Sensível: A Sociologia em busca das Emoções e dos
Sentimentos
A sociologia, em sua definição clássica, é considerada
ser uma ciência do social, daquilo que é maior do que os indivíduos, daquilo
que constitui o que chamamos de coletividade; nós sociólogos falamos em
processos e fenômenos sociais, em estrutura social, em representações
coletivas, em consciência coletiva, em ação social. Mas não há sociólogo, que,
teoricamente, ou em sua prática profissional, não tenha se inquietado com os
limites de tal definição.
Georg Simmel mostrou a importância dos
sentimentos de fidelidade e de gratidão na construção dos laços sociais, Marcel
Mauss, mostrou os elos comuns entre a sociologia, a psicologia e a
antropologia, ressaltando a importância do estudo do simbólico, da magia, da
troca e da dádiva para compreensão da realidade. Wright Mills conclamou os
sociólogos a desenvolverem a sua imaginação sociológica; Goffman, desconstruiu a
ideia de que a emoção do embaraço fosse destrutiva dos laços sociais, e mais,
que essa emoção é inerente a todas as interações face-a-face e a responsável
pela manutenção e reprodução das regras sociais, da “ordem”, nas situações de convívio
entre os indivíduos. Norbert Elias, desenvolveu e discutiu a relação entre
indivíduo e sociedade e nos mostrou a importância da vergonha na transição da
sociedade da corte para a sociedade moderna.
Na pratica cotidiana, o sociólogo que transpõe
os muros da academia, se depara com inquietações não muito diferentes. O dito
coletivo, é composto de indivíduos, são homens de carne e osso, de carne e
sangue (para usar uma expressão de Sennet) que constituem o que chamamos de
social. Quando vamos a campo o social se apresenta a nós através da observação,
da investigação, da escuta; através de questionário, enquetes, e de
entrevistas, encontramos os nossos dados, mas nem sempre ouvimos os sujeitos da
nossa pesquisa, esquecemo-nos frequentemente que são os indivíduos que nos
falam. O que chega a nós, os nossos “dados” nos contam as histórias desses
indivíduos, as suas vivências, as suas representações, as suas subjetividades.
O sociólogo pode transformá-las em números, em percentuais, e, a partir deles,
fazer afirmações sobre tal realidade, fenômeno, ou tal ou qual grupo ou
segmento social. Esse é um caminho, um caminho certamente mais seguro e mais
ortodoxo. O outro, mais difícil e escorregadio, arriscado, menos científico,
segundo os cânones de uma ciência pautada no modelo das ciências naturais,
implica um exercício interpretativo, quase de uma arte, é usar as ferramentas
que a sociologia nos oferece com a imaginação e a criatividade de quem não se
limita a técnica. É como a dança de quem, de dançar entende tanto que pode
improvisar e a todos contagia com o seu dançar. Ou do poeta e do músico que nos
leva às lágrimas com os versos que declama e a melodia das notas que entoa.
O outro caminho faz da sociologia um ofício,
monta peça por peça o quebra cabeças da realidade social que analisa,
preocupa-se em encontrar a riqueza escondida por trás do dado frio, o movimento
complexo e multifacetado por trás das aparentes cristalizações, busca a
dinâmica das relações sociais, considerando-as mais fluidamente como redes de
interações entre pessoas reais, convivendo e lidando umas com as outras,
lutando e sofrendo para produzirem suas condições de subsistência, mas também
sua felicidade e seu prazer, para realizarem os seu desejos e sonhos. Optar por
essa sociologia é buscar as interfaces entre os fenômenos que analisamos, é dar
vida e voz aos sujeitos das nossas pesquisas.
A sociologia, e, mais especificamente, a
sociologia das emoções, nos oferece instrumentos para isso. Podemos estudar a
realidade, podemos falar de estrutura social, de classe social, sem nos
deixarmos engessar pelo enquadre teórico dessa ou daquela teoria e sem
mutilarmos o sujeito e sem ignorarmos a sua subjetividade.
A incorporação das emoções e sentimentos como
uma variável sociológica nos ajuda a fazer a ligação entre as dimensões micro e
macro dos fenômenos, entre personalidade e estrutura, entre indivíduo e
sociedade.
Aquilo que chamamos de social, é, via de regra,
definido em oposição ao que definimos como o nosso “eu”, e que dissemos fazer
parte da nossa interioridade, emoções que sentimos e que geralmente pensamos
como se estivessem divididas entre um estado psicológico e algumas sensações
experimentadas no corpo. Se são os indivíduos sujeitos da história, não se pode
ignorar as suas motivações para agir, sejam elas conscientes ou inconscientes.
A análise tão cara aos sociólogos, acerca da
produção e da reprodução da ordem vigente, implica, sob a perspectiva da
sociologia das emoções, no desenvolvimento do “eu social” dos membros da
sociedade da qual fazem parte e na socialização dos seus sentimentos (Gordon,
1981) de modo tal que, todos ou quase todos (temos aqui os casos dos
psicopatas, dos desviantes, dos revolucionários), se esforçam para agirem em
conformidade com a ordem social vigente.
Isto significa que cada sociedade ou cultura
provê “regras de sentimento” (Hochschild, 1979), que definem a conveniência ou
não de sentir e de expressar essa ou aquela emoção (ou sentimento), conforme a
situação social de interação (o que inclui a hierarquia de poder e status, o
grau de aproximação, o número de participantes, etc.). A sociedade também
oferece os “vocabulários” necessários para que os seus membros possam expressar
os sentimentos sancionados por ela.
Conhecendo as regras e os vocabulários de
sentimentos da sua sociedade os indivíduos tentam manejar a expressão dos seus
sentimentos e emoções e tentam manejar até mesmo os próprios sentimentos,
trabalhando-os para pôr-se de acordo com os padrões sociais que prescrevem a
conveniência ou não de sentir e de expressar emoções e sentimentos (Hochschild,
1979). Essa capacidade, entretanto, não é isenta de consequências. Se a
adequação dos sentimentos a esses padrões permite evitar emoções negativas (como
a culpa, a vergonha e o embaraço, que podem comprometer a sua imagem e o seu
status) e pagar o custo social da sua expressão, o alinhamento ao padrão
reproduz as regras de sentimento vigentes na sociedade, isto é, reproduz os
interesses e os valores da classe dominante que elas refletem. Tem-se que se a
sublimação de certas emoções, como a raiva, por exemplo, e a evocação de outras
emoções, a exemplo da empatia, pode favorecer a inserção do indivíduo e a
coesão social, tal esforço pode, no limite, levar a alienação e a dissociação
do “eu”.
Esse processo, entretanto, não é visto pela
sociologia das emoções como pacífico ou plano.
Tento como premissas que, no capitalismo, os
sentimentos do indivíduo tornam-se uma mercadoria poderosa e desejada que
potencializa os lucros, a capacidade de gerenciar as emoções passa a ser
buscada pelo trabalhador. Apresentar-se como alguém capaz de ser simpático,
afável, ponderado, autoconfiante, independe de suas emoções não corresponderem
as que aparenta, representa um diferencial para os empregos ou funções nas
quais se lida diretamente com o público. Se os valores disseminados pela
ideologia da classe dominante com relação as emoções tornam-se padronizados em
regras de sentimento, pode-se imaginar que o indivíduo não tenha escolha. Mas
não é bem assim...
A adesão se dá à custa do sacrifício consciente
ou inconsciente de seus sentimentos, da alienação, da apatia, da
depressão, da indiferença e da passividade, mas há também a possibilidade que
os indivíduos se tornem pessoas de sucesso e proativas. Quando, entretanto, as
discrepâncias entre as exigências normativas e as emoções experimentadas pelo
indivíduo são tão extremas que ameaçam a integridade do próprio self, o
indivíduo se dissocia e se aliena ou luta para mudar os padrões em desacordo.
Hochschild oferece-nos uma análise detalhada de
como os indivíduos adultos tentam administrar seus sentimentos nas relações
interpessoais, e, sobretudo, como nas relações de troca no mercado de trabalho,
a capacidade de gerenciamento das emoções se torna uma mercadoria valorizada,
comprada e vendida em certos tipos de emprego. Hochschild generaliza as suas
conclusões para dizer que a desigualdade da estrutura social é reproduzida no
processo de socialização emocional, processo este diferenciado, caso esteja
relacionado às crianças da classe média ou da operária.
Kemper elege o poder e o status como categorias
analíticas gerais aplicáveis ao longo do tempo e das sociedades. As emoções
são, então, consideradas como resultados universais de relações diáticos entre
indivíduos, considerando-se a posição hierárquica ocupada na estrutura de poder
e status vis a vis os outros. Essas disposições relacionais dos indivíduos
envolvem comportamentos e papéis padronizados quanto às obrigações e aos
direitos a poder e status que cada um espera que o outro cumpra. A
incongruência com relação aos direitos e deveres engendra “emoções estruturais”
distintas, a depender da agência responsável pelo resultado obtido.
Há uma correspondência entre a estrutura social
de poder e status e a estrutura orgânica. Assim, a emoção natural produzida,
como resultado dos comportamentos padronizados de poder e status, não pode ser
social ou culturalmente mudada, dado que poder e status envolvem emoções
fisiologicamente enraizadas no organismo humano. Qualquer manejo da emoção
ocorre a posteriori. A sociedade ou a cultura não tem o poder de mudar uma
emoção, podem, porém, eliminá-la a um custo alto, mutilando o indivíduo, ou
levar ao desenvolvimento de patologias.
Turner analisa emoções no âmbito das interações
face a face. Sua tese central é que a expansão da capacidade de sentir (emoções
positivas), de controlar emoções (negativas), e de desenvolver a linguagem não
verbal (comunicação sem emissão de grunhidos), foi condição essencial para
possibilitar a vida coletiva sem a qual a espécie teria sido dizimada. Essas
capacidades, decorrentes da atuação do processo evolucionário de seleção
natural sobre o cérebro humanoide, são então relacionadas às interações sociais
das sociedades atuais. Assim, Turner considera que as sofisticadas emoções,
encontradas na sociedade atual, são elaborações de emoções primárias e atribui
a tensão permanente entre a liberdade individual e a cooperação, que
caracteriza as interações, ao resultado do processo evolucionário que
transformou o primata agressivo, independente e antissocial, em um ser gregário.
O teórico em questão aduz também que há predominância da linguagem não verbal
nas interações e que tal predominância ocorre em decorrência da necessidade
evolucionária. Para garantir a sobrevivência dos nossos ancestrais e protegê-los
dos seus inimigos e predadores, teria sido necessário tornar os ruidosos e vulneráveis
primatas capazes de se comunicarem por gesto. Essa é uma das suas tentativas de
se contrapor a ênfase na linguagem verbal, que está no âmago das concepções
culturalistas das emoções.
As emoções experimentadas nas interações estão
associadas às expectativas dos indivíduos, considerando-se o grau de intimidade
e proximidade mantido com os demais, e o número dos envolvidos no encontro. O
comportamento dos indivíduos é pautado por um conjunto de símbolos que instruem
e prescrevem padrões de comportamento, e recomendam “punições” e “premiações”.
Os indivíduos transportam para as interações as posições de poder (autoridade)
e status (prestígio) que ocupam na sociedade, de forma que os comportamentos
dos participantes são influenciados e tendem a reproduzir as hierarquias.
Cabe a nós sociólogos o desejo e a disposição de
fazer isso. É esse nesse tipo de sociologia que Gey Espinheira se aventurou e
pela qual foi muitas vezes incompreendido, considerado por muitos um ensaísta.
Quando decidir fazer das emoções o tema de minha tese de doutorado, Gey, com a
generosidade e o entusiasmo que lhe eram peculiares, se dispôs a encampar o
projeto e me orientar, quando o tema era ignorado e malvisto pela ortodoxia
acadêmica.